segunda-feira, 8 de junho de 2009

ENTREVISTA "Vinte reais, vinte minutos"



Vinte reais, 20 minutos
06/11/2005
Por: Bernardo Calil
"Quando morrer e encontrar Deus, vou dizer para ele: Senhor, conheci o inferno na Terra" - Elizabeth, 52 anos, comerciante da Vila Mimosa há sete

Vila Mimosa
Um assobio e o sono leve se esvaía. “Oi, quer alguma coisa?” A simpatia era surpreendente. “Uma cerveja, por favor”. “Quatro reais”. “Está vazio aqui hoje”. “Pois é, as meninas foram para a casa da Renata, é aniversário dela”. Cinqüenta e dois anos declarados, aparência de 70, magra, não mais do que 1,60m. “Como consegue dormir com esse barulho?” “Acostumada, sete anos aqui”.
A batida do funk carioca, no volume que antecede à loucura, dá o tom em um dos diversos corredores da Vila Mimosa, a mais antiga zona de prostituição do Brasil. As luzes coloridas iluminam a angústia de uns, misturadas ao alívio e à distração de centenas de outros, que circulam diariamente pela famosa rua Ceará, subúrbio do Rio de Janeiro.
Só pela frente
De um lado, casas de dois ou três andares transformadas em clubes privês. No térreo, bebidas e cigarros custam caro. Acima, o local de trabalho se resume a cubículos com uma cama, envoltos por cortinas. Jovens seminuas, encostadas nos portões, observam o movimento dos passantes e aguardam a aproximação. “Vinte reais, vinte minutos, só pela frente”. A resposta é automática.
Na calçada oposta, o comércio se multiplica. Entre um bar e outro, os corredores parecem formigueiros. Na entrada, uma faixa: “A Vila Mimosa condena a prostituição infantil. Proibido menores de 18 anos”. Coletes verdes, usados pelos ambulantes, dizem o mesmo. Dizem que a ordem é seguida à risca. Pe las mulheres.
Travestis não há. Homens humildes, carne fraca, vendem o pão pelo circo. “Início do mês é assim. A rua fica cheia, eles recebem e vêm direto. Depois, se viram do avesso até o mês seguinte”, ironiza dona Beth.
“Quer mais uma?” “Por favor”. Carioca não dispensa uma prosa. “Então são sete anos...” “Infelizmente”. “Por quê”? “Isso aqui é o fim do mundo. Não tem nada pior do que isso aqui”. “Mas então...” “É a necessidade”.
O marido fora assassinado. Era policial. A pensão nunca veio. “Enquanto não sai, preciso desses 600 reais”. O filho mora em Brasília e nem desconfia. “Acha que eu sou doméstica. Se Deus quiser, saio antes de ele saber”.
“Conheci o inferno na Terra”
No maior país católico do mundo, dizem que Ele é brasileiro. Beth discorda: “Quando morrer e encontrar Papai do Céu, vou dizer: Senhor, conheci o inferno na Terra. Outro dia mesmo, um segurança desses que ficam na porta matou um garoto porque olhou para a menina dele. Pe gou e jogou lá no mato, na frente de todo mundo. Isso é todo dia”.
Depois de olhar ao redor, conclui: “Podia ser eu”. Um riso seco. “Quantos anos você tem”? “Segredo”. Um riso aberto: “Eu tenho 52”. “Não deveria estar aqui”. “Nem você”.
Beth não é exceção. Nem unanimidade. “Estar aqui me distrai”. Vanessa trabalha há nove anos na Vila Mimosa. Mora longe, não é sempre que vai para casa. “Tenho que sustentar minha filha”. A liberdade é atraente. “Copacabana nem pensar. Cobra 100 para ficar com metade, dar o resto na mão dos donos. Aqui peço 20, mas tudo que eu ganho é meu e eu vou embora quando quiser”.
Por isso, é difícil dizer o número exato de profissionais. O movimento é constante, dia e noite. Não há folga ou feriado. “Acho que desde que isso aqui existe, tem alguém comendo alguém”.
Fugindo da guerra
A Vila Mimosa é quase centenária. Nasceu com o desembarque de mulheres do leste europeu em fuga da Primeira Guerra. Pobres e sem os maridos. O primeiro local foi a Zona do Mangue, próxima à atual avenida Presidente Vargas, no centro do Rio. Daí a designação “zona” aos prostíbulos.
As polacas, como eram conhecidas, misturaram-se às nativas ao longo dos anos, até desaparecerem. Foram perseguidas e mudaram quase uma dezena de vezes de logradouro, à medida que a cidade se modernizava. Acharam abrigo no limite pobre da alameda, escondidas sob os trilhos dos trens suburbanos, onde havia uma vila. O nome pegou.
A guerra acabou, mas a fuga não. “É um trabalho como qualquer outro. Está difícil para todo mundo”, justifica Vanessa . A boemia, como o mundo, virou negócio. “Trinta e quatro casas aqui são do mesmo dono, quase metade”. Depois do desabafo, o protesto: “Está perguntando demais já. Dinheiro que é bom nada”. Tempo, todos sabem o que é.
As Beths e Vanessas se juntam dia após dia às Joanas e Patrícias e Manoelas da Rua Ceará. A máquina não pára de girar, como os ponteiros do relógio. Mas as noites na Vila Mimosa continuam durando mais do que as outras.
O boteco estava vazio naquela noite. Na escada, uma jovem passava desodorante seco nas axilas, indiferente aos dois ou três rapazes que bebiam cerveja do lado de fora, sentados à mesa de alumínio. O som dos vizinhos ensurdecia. Músicas sobrepostas, incompreensíveis. Dona Beth dormia sentada atrás do balcão, como se o tempo passasse mais rápido. O dia terminaria dali a poucas horas, assim que o sol mostrasse, mais uma vez, o caminho de casa.

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